Por Michele Sato
A menos de 50 metros da casa de Chico Mendes, a delegacia de polícia fora abandonada, já que a justiça parece ser um artigo de luxo neste país chamado Brasil. Somente a coragem e o engenho de jovens rebeldes recriariam aquele lugar, transformando ruínas em potencial de sonhos. Clênio e Wagner San tiveram trabalho em convencer o grupo de jovens de que aquele local abandonado seria um palco ideal à arte de Xapuri, mas o trabalho maior viria depois, na hora da limpeza e na arrumação do local abandonado, que entre entulhos e vestígios de impunidade, ainda oferecia desajustes físicos em pedaços.
Tudo arrumado, afinal, Amarildo anunciava poeticamente o espetáculo da floresta no alto do telhado da delegacia, com os letreiros (não luminosos) atraindo o público: "arte na ruína". Sua voz ecoava facilitada pela ausência de tetos e telhados, e Cildo cuspia seu desprezo à injustiça em fogo malabarista num circo que mostrava o sol em plena noite. A recepção especial veio pela poética de Clenes, que me convidava à entrada de sua viagem de fantasias.
A primeira sala emanava fitas, panos e tecidos coloridos confundidos nos corpos camaleônicos de 3 dançarinos. Disfarçados de corpos humanos, Cley, Cleo e Gino eram as brisas que se movimentavam ao sabor de notas musicais, ultrapassando barreiras físicas e tornando as paredes apenas uma ilusão, pois suas danças flutuavam no orbe de encantos. E o corpo se prosseguia em outra sala, desta vez numa prisão de grades que escondia Rômulo, mas que barreira nenhuma o privava de sua liberdade. Desenhos, gravuras e quimeras brincavam com as esculturas do San, num contraste da dor e da alegria da performance.
Xapuri mostrava sua cara na voz de Alarice, como se Cazuza encarnasse a fome pela vida na mágica sinfonia destes jovens talentosos. João Paulo, Jarede e Rafael também embalavam o rock and roll dilacerante, como se a sonoridade inquieta pudesse libertar as almas vagantes ao mundo da paz. A tênue linha que segregava solidão e conflitos enroscava na pipa que voava pelos ares no show coletivo daquela arte sensível. E a representação teatral veio por Clemilsa e seu filho Diogo, Leleide, Getúlio, Aíton e pelo próprio Clenes. A poesia declamada deitava-se no chão, e ali as estrelas iluminavam aquele palco construído numa delegacia destroçada.
Queria ter chorado em silêncio, apreendendo cada momento como se fosse o último, na sensação vazia de que jamais presenciaria tamanho espetáculo. Mas naquele momento, compreendi que meu silêncio poderia ter interpretação contrária e balbuciei algumas frases, talvez sem nenhuma conexão sensata, mas as únicas possíveis naquele momento. A grandeza do instante veio em forma deste texto num quarto de hotel, quando a memória recusava a esquecer a coragem imaginativa de jovens arguciosos que me mostravam suas feridas, em uma das feridas arquitetônicas da história de Chico Mendes. Imanentes em suas dores romperam grades, quebraram janelas, voaram céus e transcenderam suas angústias. Se o sonho é algo possível, ele estava ali, excitadamente apresentado naquele instante que vencia cansaços, ruínas e tempos e se consagrava na alegria mais expressiva da raça humana: a arte!
Texto completo – Impressões de uma viagem amazônica
http://www.ac.gov.br/bibliotecadafloresta/biblioteca/index.php?option=com_content&task=view&id=86&Itemid=85
2 comentários:
O que dizer do emensurável
Olhando as postagens do Arte na Ruina muito me alegra pela grandiosa vontade deste grupo em trazer aos nobres xapurienses a graça e a magnitude da arte pelo seu ângulo mais perceptível o da realidade. Ao passo que decaio numa grande tristeza em perceber que a política cultural de Xapuri se esfalece na tolice congênita dos agentes públicos responsáveis pela manutenção do gênero artístico neste município.
É válido ressaltar que nesta cidade grandes movimentos culturais nasceram e sobreviveram ao longo de algum tempo unicamente pela iniciativa popular que sempre estiveram a frente das iniciativas e digamos com apoio quase inexistente do poder público. Cito nesse interim a criação do Grêmio Cultural Madre Petronilia Trinca em 1953 pelos jovens do então Instituto Educacional Divina Providência, que marca a entrada dos jovens xapurienses nas diversas expressões artísticas entre elas o curso normal de piano para moças que era realizado na própria escola bem como eventos esportivos e teatrais sempre a cargo dos Frades Servos de Maria que aqui residiam.
A partir deste marco inicial, muitas iniciativas na área da musica, teatro e pasmem até mesmo na literatura foram amplamente difundidas entre a juventude pacata e ordeira de Xapuri nas décadas de 60, 70 e 80, sempre sem o apoio do Poder Publico. Essas décadas são marcadas pela chegada dos migrantes sulistas que contribuíram decisivamente para miscigenação de uma estrutura cultural, fortemente alicerçada na realidade local.
Se formos considerarmos as expressões artísticas neste rincão amazônico, devemos primeiramente agradecer sempre a atitude dos jovens xapurienses, que sempre estiveram a frente dessas transformações, as vezes tidos como rebeldes, indisciplinados. Não, plenamente, incompreendidos sim, rebeldes jamais, dispostos a mudanças sim... indisciplinados não... diferentes do padrão adotado por isso difíceis de serem interpretados.
É nesse contexto que se apresenta a proposta dos Jovens integrantes do Arte na Ruína, verdadeiros navegadores que lançam seus horizontes num objetivo claro e preciso, o de sensibilizar a população e os agentes públicos, para com o grave descaso que a cultura vem sofrendo nos últimos anos em Xapuri. O que dizer então de tão nobre intenção??? exaltar a iniciativa e ver que há necessidade de fortalecermos tal movimento para que não seja o apelo unicamente de um grupo, mas de uma sociedade toda...
Conheço todos os integrantes do Arte na Ruína e vejo com bons olhos tal movimento iniciado com muita garra dedicação e acima de tudo qualidade nas suas apresentações e alegro em saber que tenho certeza de que este pequeno fragmento do novo alvorecer das expressões artísticas em Xapuri se constituirá numa nova realidade vindoura...
Parabéns aos integrantes do Arte na Ruína pela iniciativa
Joscíres Angelo
Sinto-me envaidecida pelo comentário e já vi que o pessoal colocou seu comentário fora daqui, merecida e reconhecidamente.
AMO vocês, moçadinha linda de Xapuri... na leveza da alma, do tributo à vida e da luta incansável de tornar a arte a maneira mais bela de promover a inclusão de todos, com cuidado ambiental
E vcs tem talento de sobra pra isso
amores de sempre
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